A subjetividade contemporânea
Na passagem da modernidade à pós-modernidade, os novos contornos do sujeito contemporâneo.
A subjetividade é uma instância viva da relação entre sujeitos e sociedade. Usando as palavras do filósofo francês Jean-Paul Sartre (1), subjetividade é “um sistema de interioridade”, uma via bidirecional por meio da qual trazemos para dentro elementos do mundo externo, os misturamos com nossos próprios conteúdos, e depois os devolvemos para o exterior. Isso significa que funcionamos como sistemas semiabertos interagindo com a cultura na qual estamos inseridos, afetando-a e sendo afetados por ela, em um movimento contínuo de atualização. Dessa forma, cada período da história produz subjetividades condizentes com ele e, portanto, é possível entender a subjetividade entendendo as características daquele período, e vice-versa.
Podemos dizer que o que estamos observando ao nosso redor e sentindo na pele neste primeiro quarto de século é a fase já consolidada das transformações profundaspelas quais a humanidade vem passando desde o último terço do século passado, quando o período que chamamos de modernidade — que marcou o fim da era medieval e trouxe consigo novos paradigmas, como a divisão da sociedade em classes sociais, a separação entre religião e Estado, a substituição do pensamento místico-religioso pelo pensamento racional-iluminista para explicar o mundo, a mudança do feudalismo para o capitalismo, o trabalho assalariado, entre outros — foi perdendo a firmeza de seus principais alicerces, cedendo lugar ao surgimento da pós-modernidade.
Isso significa que estamos usando critérios internos novos para nos relacionarmos com o mundo, e um dos mais marcantes é o critério do individualismo, surgido do culto à liberdade individual que substituiu o senso de coletividade de tempos anteriores. Significa, também, que estamos revisitando algumas das instituições consolidadas durante a era moderna, como Família, Democracia, Gênero, Ciência, e questionando sua universalidade. Também significa que estamos adoecendo psiquicamente de outras coisas — lá se vão os tempos das neuroses obsessivas e das histerias; agora somos sujeitos mais ansiosos e deprimidos do que nunca.
Muitas coisas precisam ter mudado no tecido cultural que sustenta nosso dia a dia para podermos dizer que estamos diante de uma nova construção de subjetividade. É uma transição lenta, gradual, que vai acontecendo de geração em geração, até ser um “novo normal”. Por isso, é interessante (eu acho belo, também) fazer o exercício de traçar algumas das rotas das transformações que nos trouxeram até aqui.
A Psicanálise, por exemplo, só pode surgir naquele fim de século XIX porque o próprio pensamento moderno vinha se modificando por meio das indagações filosóficas que surgiram depois do Penso, logo existo, construindo uma noção de indivíduo e de individual, o que serviu de base para que Freud desenvolvesse um corpo teórico baseado no Eu. E foi essa mesma Psicanálise que, por ter revolucionado o pensamento Moderno, serviu de terreno para que outros teóricos, como Foucault, Lyotard, Deleuze, olhassem para o mundo a partir do particular, iniciando um outro movimento filosófico que se propôs a observar o relativo, a exceção, as bordas, inaugurando algo que, apesar de ter saído dali, já não se parece com a forma estruturada Moderna de Freud pensar e trabalhar. Esse relativismo é um dos alicerces da pós-modernidade (2).
Ao mesmo tempo, aquele capitalismo da mais-valia e do trabalhador assalariado sobre o qual Marx se debruçou com tanta lucidez — que passou por seu período civilizado nas breves décadas do bem-estar social (3) — se enveredou na direção do neoliberalismo que, como explicam com clareza os autores do livro Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico (4), extrapolou os limites da Economia como doutrina e se instalou no imaginário — sim, na subjetividade — da sociedade, instituindo a Liberdade como o valor máximo ao qual devemos almejar e deixando como legado uma classe de trabalhadores precarizados, vulneráveis, desassistidos e uma sociedade individualista e performática.
As tecnologias, que evoluíram do motor a vapor no século XVIII à eletricidade, ao rádio, à televisão e aos computadores com internet no século XX, também ajudaram a moldar a forma como vemos o mundo e como nos relacionamos com o tempo, a espera, o consumo, o trabalho, a política.
Eu tenho repetido que as pesquisas sobre a contemporaneidade apontam para algo que vai além de um choque de gerações natural, que de fato atualiza subjetividades a cada 15 ou 20 anos, e que vai dando continuidade ao processo civilizatório. Estamos observando, como eu mencionei anteriormente, novos sofrimentos, um novo mal-estar (muito diferente daquele apontado por Freud no início do século XX), e patologias típicas de situações de excessos, que surgem quando a falta de limites exaure os recursos disponíveis, tanto no nível individual quanto no nível das relações — este último, um assunto que me interessa muito. É por isso que eu gosto de usar o termo pós-modernidade para nomear este período, já que ele não indica algo novo e sim um pós, um “além disto”, aquilo que vem depois do último estágio da era moderna sem, contudo, encerrá-la, e onde os excessos se acentuam como um after partyestendendo uma balada que já tinha sido intensa.
Mesmo assim, por se tratar de um processo subjetivo, entendo que não faz sentido analisarmos qualquer organização de subjetividade a partir de um juízo de valor, como se houvesse subjetividades certas ou erradas, melhores ou piores. Existem subjetividades contextualizadas e, a partir disso, existe a nossa ação, como adultos, no sentido de compreender as idiossincrasias de cada período, e de participar na organização dessa realidade tanto no campo individual quanto no campo coletivo.
Os pensadores da contemporaneidade têm se referido ao período no qual estamos de modernidade líquida, sociedade do espetáculo, pós-modernidade, sociedade do desempenho etc. Eu tenho me referido a essa subjetividade apenas como contemporânea. O que a subjetividade contemporânea nos diz a respeito do sofrimento das pessoas e das mudanças na maneira como estamos reagindo uns aos outros e como estamos nos organizando social e politicamente, é o que estarei explorando nos próximos textos.
(1) SARTRE, Jean Paul. O que é subjetividade? Trad. Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015.
(2) LYOTARD, Jean-François. A condição pós-moderna. Trad. Ricardo Correa. 20a ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2021.
(3) Li em um texto do economista grego Yanis Varoufakis essa ideia de que a social-democracia, com sua política de bem-estar social, poderia ter domado o capitalismo.
(4) SAFATLE, Vladimir; DA SILVA JUNIOR, Nelson; DUNKER, Christian (Orgs.). Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico. Belo Horizonte: Autêntica, 2022.