Mantendo a dignidade das terapias integrativas em tempos de desinformação

Publicado em 14 de novembro de 2022

 
 

Não é à toa que as terapias complementares também são chamadas de "alternativas". Por sua própria natureza não-material e invisível, elas se apresentam como uma opção ao status quo, ocupado pela medicina convencional e cartesiana.

Isso significa que a maioria de nós, terapeutas ou pacientes de práticas complementares, se propôs a passar por um processo de flexibilização de conceitos para lidar com as ideias pressupostas nessas técnicas. Afinal, você precisa estar disposta a dar uma dobradinha em sua formação materialista para levar naturalidade à noção de chakras, por exemplo, ou para aceitar que uma água floral trate crises de ansiedade.

É interessante e arriscado caminhar na fronteira entre o visível e o invisível, porque o risco de nos perdermos em teorias mirabolantes é alto. Por isso, é necessário ter um pouco de mente aberta e muito pé no chão.

Na área das Práticas Integrativas e Complementares (PICS), por exemplo, estamos acostumados a ouvir coisas como “esta técnica atua diretamente sobre o DNA” e “vamos reorganizar as sinapses do cérebro”. Até pouco tempo atrás, não era necessário explicar que tais afirmações não devem ser entendidas ao pé da letra. Sabemos que as técnicas integrativas, afinal, se utilizam de linguagem simbólica para explicar seu funcionamento, e por isso não são interpretadas de forma literal.

Nestes últimos 10 anos, no entanto, durante os quais os métodos de desinformação foram bem sucedidos em atravessar a barreira do bom senso no imaginário de uma grande quantidade de pessoas, a linha entre o real e o inventado, para quem não estava bem firmado no chão, foi ficando difusa. E tem sido bastante desconcertante observar a facilidade com que alguns colegas se deixaram envolver pelo convite tentador de abrir mão do compromisso com os fatos e se entregar ao gozo das conspirações.

O que acontece é que, na presença do que é místico, manter a lucidez é enfadonho. A psique sente um certo prazer, uma recompensa narcísica, quando se entrega sem resistências, por exemplo, a uma teoria antivacina, pouco robusta em termos de dados concretos, porém ampla e maleável o suficiente para se encaixar no quê de sobrenatural que envolve as práticas integrativas.

(Tente sentir em seu corpo o que eu vou te dizer agora: é gostosinho abrir mão da rigidez da razão e se entregar ao gozo descompromissado da fantasia.)

Porém, terapeutas, sejam da linha que forem, não podem se dar esse luxo, porque lidam com a vida de outros seres humanos. A ética, a responsabilidade e o compromisso com a realidade são inegociáveis. Por mais envolventes que sejam as mais novas teorias sobre o flúor na água ou sobre a origem do coronavírus, quem trabalha com linhas alternativas deve estar tão comprometido com a confiabilidade de suas fontes quanto qualquer outro profissional de saúde — talvez até mais.

Do limão, uma limonada

Tempos agudos — como os atuais — pedem um pouco mais de presença e autoavaliação. Temos um exemplo gritante de descolamento da realidade com a direita fanática, tanto no Brasil como em outras partes do mundo. Nossa linha de referência tem que ser essa. Na minha área, estou me parecendo com eles? Estou disposta a administrar minha dissonância cognitiva procurando apenas fontes que confirmem o que eu quero acreditar? Tenho estado disposta a alargar minha abertura para o oculto e estreitar o engajamento com o real, como se a natureza imaterial do meu trabalho me concedesse esse tipo de permissão? Se alguma dessas respostas tiver sido sim, é hora de rever atitudes.

Olhando pelo lado do amadurecimento das PICS no Brasil, se estes últimos anos de desinformação e negacionismo tiverem servido para descortinar algumas das sombras da área, como a alta tolerância a teorias pouco fundamentadas, teremos feito uma limonada com esse limão.

Hoje, o SUS já disponibiliza mais de 30 PICS em seus postos de atendimento, e o processo de construção de uma imagem de profissionalismo e respeito entre os conselhos profissionais, o poder público e os pacientes, tem sido lento e trabalhoso. Sabemos que a natureza das práticas energéticas ainda suscita uma certa torcida de nariz em muita gente, o que exige de nós um esforço mais concentrado no sentido de mostrar que o nosso trabalho é sério e legítimo. O que cada um de nós faz, reverbera na imagem de toda a comunidade. Por isso, nós temos que ser os primeiros a firmar um contrato com a sobriedade, mantendo os pés no chão e tirando a cabeça da lua.

 

 

CONVEXA é um projeto de desenvolvimento, apoio e supervisão para terapeutas, criado para fortalecer a confiança, a estabilidade e o senso crítico. Em termos de formato, a CONVEXA é um pouco um CURSO, um pouco uma MENTORIA, um pouco uma SUPERVISÃO e um pouco um CORPO DE TEXTOS, que estimulam a troca de informações, ideias e experiências. Este artigo é parte do corpo de textos do projeto. Saiba mais.