Autoconhecimento e individualismo

Publicado em 3 de fevereiro de 2022

 
 

Em 2015, criei um projeto chamado Encontros de Autoconhecimento. Naquela época, eu estava começando a elaborar o trabalho que venho construindo desde então, uma mistura de textos com cursos. A minha vontade era reunir pessoas curiosas e interessadas em ouvir e entender mais sobre si, e a prioridade era construir conhecimento juntos, debatendo e trocando experiências.

Como o nome dizia, nessa série de 4 encontros, nos propúnhamos a debater aspectos do autoconhecimento que eu chamei de Eu comigo, Eu e o outro, Eu e o mundo e um módulo extra, chamado Eu e o alimento.

Para mim, era muito importante que os diálogos não girassem somente em torno de informações sobre a individualidade de cada um. Eu quis amarrar, também, conteúdos que fossem desenvolvendo a percepção de si dentro das relações, dentro das comunidades, dentro do mundo.

O que acontece é que, assim como todas as disciplinas, a do autoconhecimento também tem suas armadilhas. Como falamos no último texto (1), estando inseridos na lógica econômica contemporânea, focada em transformar o que for possível em mercadoria, corremos o risco de entrar em um discurso concentrado na venda de bem-estar, em vez de entendê-lo como um processo de organização interna.

Além disso, essa mesma lógica tem oferecido o autoconhecimento como uma ferramenta que reproduz um raciocínio próprio do individualismo e da meritocracia, cada um olhando para si e “se aperfeiçoando” para alcançar sonhos, realizar desejos e ter a vida que cada um “merece” (2). Na verdade, a organização interna não se reduz a uma busca de sucesso individual, ela é um caminho para que o indivíduo tenha uma ação construtiva dentro da sociedade.

A repetição do discurso do aperfeiçoamento e do sucesso pessoal, na nossa área, contribuiu para alimentar a visão individualista que está espalhada no imaginário coletivo em nossos dias. Esse individualismo disfarçado de autoconhecimento vira argumento para não se vacinar por “direito a exercer a liberdade individual", por exemplo.

Mas nós não somos seres isolados fazendo escolhas, somos seres sociais.


No consultório, eu vejo o caminho da organização interna se desenrolando em três fases.

As pessoas costumam iniciar seus processos terapêuticos ensimesmadas, desorganizadas e emaranhadas em suas dores, inseguranças, mágoas, dificuldades, em seus relacionamentos, em seu passado, em suas frustrações. nesta fase, as técnicas de cada linha terapêutica dão sustentação para que o paciente comece a se desenrolar e a se ver mais separado de seus problemas. Esta fase dura relativamente pouco, em geral alguns meses, porque é uma fase de faxina geral.

Na segunda fase, a da organização interna propriamente dita, a pessoa já se distanciou dos problemas a ponto de conseguir enxergá-los de longe, e aqui é onde o trabalho profundo acontece. São alguns anos de um movimento que vai desamarrando os nós que carregamos desde pequenos e reproduzimos na vida adulta, e em paralelo vai educando e preparando a pessoa para desenvolver um repertório próprio de recursos para lidar consigo mesma.

O que eu chamo de terceira fase, na verdade, é algo que se desenvolve a partir de um determinado momento da fase anterior e se prolonga, espera-se, pelo resto da vida. Aqui as neuroses estão se organizando e a pessoa passa a ter energia psíquica disponível para olhar além de si mesma, percebendo e enxergando o impacto de suas ações no ambiente que a rodeia.

Essas três fases não são necessariamente consecutivas, e cada pessoa passa por elas de um jeito diferente, em geral em forma de vai-e-vem. Na vida que acontece fora do consultório, sempre estamos nos aprofundando em alguma delas. e esse é o movimento natural e saudável de desenvolvimento humano. Não somos seres isolados, somos seres sociais.

Por isso, o que interessa, para mim, neste momento, é que a gente tenha consciência de que o discurso do aperfeiçoamento e do sucesso pessoal como produtos do autoconhecimento é uma maneira mascarada de vender individualismo e ansiedade. Isso não é saudável, nem para você e nem para a sociedade da qual você faz parte. A organização do mundo interno se baseia em outro paradigma e tem outro objetivo, que tem muito mais a ver com as relações — a minha comigo mesma, a minha com as pessoas que me rodeiam e a minha com o mundo no qual eu vivo.

 

 

Neste início de ano, estou provocando alguns diálogos para que a gente possa ir construindo um pensamento crítico ao longo dos próximos meses. Eu sei que tem muita gente da área de saúde aqui, e também tem bastante gente que não trabalha como terapeuta, mas que se envolve com autoconhecimento de alguma forma. Estes textos são para todos vocês.