Marie Kondo da casa interna

Publicado em 30 de abril de 2019 (editado em agosto de 2021)

 

foto: philipp berndt (original unsplash, editada por mim)

 

Há uns 2 anos, comecei a me apresentar como uma pessoa que “te ajuda a organizar o seu mundo interno”. Na época, eu estava usando as sessões de BodyTalk para investigar o desenvolvimento das neuroses e comecei a enxergá-las como uma “bagunça na casa”. Eu estava percebendo que, com um empurrãozinho do trabalho no consultório, meus pacientes estavam “organizando seus mundos internos”.

Apesar de sermos um entrelaçamento de muitos conteúdos (traços de personalidade, memórias, comportamentos e crenças aprendidos, configurações genéticas, astrológicas, energéticas etc), didaticamente faz sentido falar sobre o processo terapêutico como um trabalho em camadas. Tempos atrás, uma paciente comentou, ao final de uma sessão: “eu me sinto uma cebola humana. toda vez que eu descasco uma camada, encontro outra embaixo para trabalhar”.

Me lembro que o comentário dessa paciente me levou a pensar nas camadas que a gente desvela ao longo da vida, conforme vamos nos conhecendo melhor, e me lembrei do meu próprio caminho de auto-observação, terapias, investigação, organização interna dos últimos 20 anos.

Nos meus primeiros anos de terapia, lá com 21 anos, o foco das sessões era a minha autoestima e a minha dificuldade de sair de um relacionamento que já não estava muito legal. Posso dizer que estava trabalhando a camada da autoestima.

Depois, com a autoestima já mais fortalecida, terminei aquele namoro e comecei a ter outros relacionamentos. Nessa época, percebi que além da autoestima, havia outra camada que dizia respeito à dinâmica do casamento dos meus pais, a como eu aprendi a me relacionar observando o relacionamento deles. Enquanto o trabalho da autoestima parecia estar se contraindo, o trabalho a respeito dos meus pais estava a todo vapor, se expandido.

Mas trabalhar os efeitos do casamento dos meus pais na minha vida, ao mesmo tempo, influenciava diretamente a minha autoestima. Uma camada entrelaçada à outra. Está dando para acompanhar?

Após organizar um pouco a questão com os meus pais, já bem mais adulta, e casada, comecei a trabalhar as mensagens que eu recebi e internalizei, ao longo da minha vida, a respeito do lugar da mulher/esposa em relação ao homem/marido. Enquanto eu olhava para isso, voltei e terminei de organizar uma coisa que tinha ficado pendente na outra camada, aquela dos meus pais. ressignifiquei a minha mãe. Ressignifiquei o meu feminino.

Hoje eu entendo que eu precisava ter esgotado ao máximo o trabalho a respeito dos meus pais para que a camada do feminino se expandisse para ser trabalhada. E assim que ela se mostrou, eu pude retornar para trabalhar o que tinha ficado pendente lá atrás.

O autodesenvolvimento é uma dança, um vai-e-vem, um expandir e contrair.

Foi a partir daí, há uns 5 ou 6 anos, que eu parei de descrever o trabalho terapêutico como um “andar para frente” e passei a falar sobre ele como uma organização das várias informações registradas em cada camada do meu mundo interno.


Neste mundo holístico pelo qual eu transito, fala-se muito em iluminação, desidentificação com o ego, desenvolvimento espiritual, mas tem um lugar dentro de mim, o lugar da psicóloga, que entende que os conteúdos só são organizados com um bom acompanhamento terapêutico, conduzido por um terapeuta treinado, que te observe de fora e te ajude a enxergar os pontos cegos que você não consegue ver.

Quem ouviu os primeiros episódios do Metamorfose (1), me escutou falando sobre o impacto dos últimos meses de 2018 no meu trabalho. estávamos em plenas eleições presidenciais e eu comecei a observar, em meu consultório, pessoas bastante comprometidas com seus processos de autodesenvolvimento adoecendo, sem energia, mexidas com o que estava acontecendo ao nosso redor.

Fiquei desconcertada, e decidi pesquisar o que poderia estar acontecendo. Continuei me observando e usando as sessões também como investigação e, mais uma vez, me deparei com a imagem de colocar ordem nos conteúdos para ajudar essas pessoas a saírem do congelamento, da raiva, da estagnação emocional, e voltarem e funcionar normalmente na vida. Uma coisa meio Marie Kondo do mundo interno.

Quando um nível de ordem interna é alcançado, outros conteúdos passam a se ajeitar organicamente, e aqueles movimentos naturais de expansão e contração, aproximação e afastamento (das coisas, pessoas, ideias), que são processos naturais da vida, voltam a acontecer. Você não fica mais fixado em um ponto. e, por sua vez, quando essa ordem interna entra em sintonia, fica mais fácil entrar no fluxo natural da vida.

Antes, por certo, eu via esse tal fluxo da vida como um rio que corre em uma certa direção. Me entregar ao fluxo da minha vida significava me jogar no rio e me entregar à corrente. Com o tempo, percebi que essa analogia me fazia entender que o rio tinha um caminho linear, que sai de um ponto A e chega em um ponto B. Isso me trazia a sensação de que eu iria entrar no rio e ir embora, deixando para trás uma verena “do passado”.

Quando eu entendi que fluir saudavelmente pela minha vida tinha a ver com focar na organização da minha casinha interna, mas que essa casinha não iria a lugar nenhum, e que, pelo contrário, continuaria erguida na mesma rua, mesmo bairro, mesmo planeta de outras casinhas, eu também passei a ver o mundo de outra forma.

Parei de olhar para as pessoas da minha vida esperando que elas “evoluíssem” até que a gente se encontrasse em outro ponto do rio, parei de esperar que a sociedade evoluísse de um ponto A a um ponto B, e passei a respeitar o processo de expansão e contração que acontece não só individualmente, mas também coletivamente.

Essa percepção, esse tentar viver a partir da minha organização interna, entendendo que eu tenho conteúdos que estão se expandindo, outros que estão se contraindo, alguns esperando para se apresentar, e assim por diante, tem sido muito, muito forte. Quando eu estou alinhada com isso, me sinto menos impositiva, mais lúcida e tolerante, porque não espero mais que alguém pense como eu e “chegue onde eu já cheguei”.

A partir desse ponto de vista, não faz sentido termos a expectativa de que um dia todos concordemos a respeito de qualquer assunto. É melhor entendermos, de uma vez, que seguiremos sendo muito heterogêneos, e, portanto, exigir que o outro concorde conosco, não é tão agregador quanto pedir que ele respeite as nossas escolhas.

 

SAIBA MAIS

(1) Metamorfose — podcast


O autodesenvolvimento é uma dança, um vai-e-vem, um expandir e contrair.

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Quando um nível de ordem interna é alcançado, outros conteúdos passam a se ajeitar organicamente, e os movimentos naturais de expansão e contração, que são processos naturais da vida, voltam a acontecer. Você não fica mais fixado em um ponto.